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Poeshydra

Atualizado: 22 de jun. de 2022

A Luz do Abismo


Dividido em quatro capítulos: A tampa do bueiro sucumbe, Poros expostos em vista nublada, Extensões possíveis ao restrito cenário e A invenção do instante, o segundo livro do poeta Armando Martinelli traz sua lupa rigorosa (e vigorosa) acerca do cotidiano. A URRO! publica três textos mutantes e irônicos do autor.



Algumas poesias (ou seriam as pessoas?) demoram a se abrir ao leitor. Regra número um: o leitor de poesia há de ser paciente, há de voltar ao livro com devoção, vulnerável ao mistério, até que em um par de horas, comum como outro qualquer aquelas palavras se abrem inexplicavelmente e te convidam para uma dança, é o caso deste livro.


Aqui, a poesia é uma boca sem dentes, mucosa de pântano, escura, úmida, impossível de se desvencilhar. Entramos em contato com as camadas existenciais da palavra através das sombras e de repente o poema é o apátrida que caminha ao nosso lado desfocado e no entanto íntimo.


A Luz do Abismo é um livro de contrastes, a ruína do que outrora foi regresso. Carrega as particularidades da (de)composição onde há humanos? São todos uns irreconhecíveis. Não sem ironia caminhamos pelos poemas, não sem humor ou lirismo na fresta, a teimosia de um mamão no muro.

Algo de Brecht que grita a tua indignação está no lugar errado, mas o mundo esqueceu os óculos e ainda assim: Armando aproxima distâncias, mergulhando no ritmo das florestas somos o barulho das folhas enquanto alguém corre por nós.


Há neste livro o imperativo do verbo e a fragilidade do medo do dentro da rua na ponta dos versos: flanela na lança são poema revestidos de notícia, de revolta e de inversões. As palavras e o seu hálito da infância se derramam em um dos mais belos encontros deste livro. Dois poetas, tio e sobrinho; três com o demônio, quatro com o riso (rir cúmplice é uma saudade unânime) e tudo isso dentro do poema e seu sinônimo, o Abismo.


Texto da escritora Aline Bel para a orelha de A Luz do Abismo (Editora Urutau 2022), segundo livro de Armando Martinelli, jornalista, poeta, escritor, radicado em Campinas.


A obra encontra-se em venda virtual no https://editoraurutau.com/titulo/a-luz-do-abismo


Spoiler.


Welcome to brazil


O senhor de meias e chinelo arruma o relógio

o entregador de jornal se aproxima

desgraças sobrevoam os muros


O senhor de meias e chinelo arruma o relógio

não vê a troca de guarda na floresta

não soube da nova chacota do ministro

ouve a gargalhada no andar de baixo


O senhor de meias e chinelo arruma o relógio

não se lembra do desmoronar infindável

quem sabe ganhará um livro de aniversário

beleza pura é antídoto

tambor dos acordos mais profundos


Eles decidem a aposentadoria na Ilha de Caras

dançam

todos eles dançam

sapateiam sem qualquer pudor


Welcome to brazil


O senhor de meias e chinelo arruma o relógio

não se preocupa com a coletânea de impropérios

prefere a mordida poética no ouvido

a boca sedenta de saliva

Cruza a rua do Professor e reverencia

cambalhota é alívio na terra do louvado retrocesso


Semáforo


Crianças, gêmeas, no carrinho empurrado pela moça de uniforme

olhares conduzidos por dedos apontados às novas percepções


Uma senhora surge na cena

passa ao léu, cabeça baixa,

não penetra o radar dos pequenos


Paisagem captada no centro das Campinas

no final de uma tarde qualquer

vê o carrinho dos bebês cruzar o pôr do sol

imagina dedinhos saltitantes


A senhora volta ao cenário, do outro lado da rua,

em frente à farmácia

o tempo de um semáforo


A espera


O lábio contra a xícara quente de café

independente das discussões acerca do plano crucial

o aguardo ultrapassa a cena

conduz o tempo na sacola de feira

puída

corroída em memórias


O lábio contra a xícara viciosa de café

mesmo com as pilantragens do comércio mundial

tentativa de conter fragmentos aleatórios

passo a passo do anticlímax

ensaio amorfo em conta-gotas

corredor das fugas elaboradas


O lábio contra a xícara perfumada de café

porto de embarque ao desejo matinal

escape sentinela das certezas

abrigo aos fura-filas cotidianos

do parapeito do gradil urge o calendário


Liberador de endorfina


Destemido

coçou a orelha do inimigo sem deixar arranhão

elogiou a postura do milico

fina camada de requinte

caçoar dessa gente libera endorfina


Libertino

cheirou o cangote de políticos sem apertar o cifrão

seduziu bonecos de cera por esporte

cutucou egos sem melindres

brincar com esses seres alivia


Orgulhoso

congelou movimentos na hora certa

modificou a rota corporativa

represou a pressa

inverteu o fluxo-anestesia

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